um conto por Liliana Lavado
Este ano foi uma merda. Ou antes, foi um ano em
que eu fiz muita merda!
É suposto isto ser um exercício de escrita franco
e genuíno, daqueles em que o objectivo é o crescimento pessoal, onde
abandonamos medos, preconceitos e afins, abraçamos os defeitos (coisas menos
boas chamam-lhe os optimistas); uma daquelas terapias passo-a-passo, tipo
alcoólicos anónimos, mas menos interessante, porque essa gente sabe como se
vive uma vida em festa (a foda é a ressaca!) e nós depressivos crónicos, muito
pelo contrário, só sabemos como se vive uma vida em ressaca (e a puta da festa
nem vê-la!).
O meu nome é Amélia, e embora não seja suposto
estas linhas serem lidas por mais ninguém, ter o meu nome aqui pareceu-me
indispensável porque acredito que foi com ele que começou a minha personalidade
depressivo-dramática. Amélia. Améééliiiiaaaa. Impossível não concordar que a
minha mãe fez a escolha perfeita quando o escolheu. É de facto o nome para um
espírito inconstante num corpo descoordenado; um par de olhos alienados, uma cabeleira
desgrenhada, unhas roídas até ao sabugo, sorriso condescendente, voz
monossilábica... pelo menos foi até ao dia que o meu cérebro fritou.
Qualquer ‘alguém’ que saiba alguma coisa sobre
depressão, sabe que quando ignorada, é só uma questão de tempo até o sujeito
deprimido (i.e. Eu) entrar em curto-circuito. Tal como num bom livro, chega o
dia que não é como todos os outros, os poucos neurónios saudáveis que restam torram
e então uma destas três coisas acontece: cenário 1, suicido; cenário 2,
assassinato; cenário 3, hospício.
Eu quis ser especial. Consegui. Criei uma simbiose
perfeita dos três cenários de horror.
Cenário 1, suicido. Um observador mais desatento classificaria
o meu suicido apenas na forma tentada (a julgar pelas cicatrizes nos meus
pulsos e o facto de continuar a respirar) e poderia considerar que falhei; mas
o corpo foi verdadeiramente a única coisa que sobrou. Já não existo naquela que
era a minha casa, não existo naquele que era o meu emprego, não sou a cara-metade
de nenhum homem, nem a dona do meu gato, nem amiga dos meus amigos... pronto,
talvez último ponto nunca o tenha sido, mas até esse dia pelo menos dava-me ao incómodo
de tentar fingir que era.
Cenário 2, assassinato. Evaporei-me numa explosão magnifica
que dizimou a imagem que toda a gente nesta terra tinha de mim (os que sabiam o
meu nome, quem eu era, ou pensavam/imaginavam que me conheciam). E com isso,
assassinei todos eles porque ninguém sobreviveu ao evento; hoje nenhum existe
na minha vida. Para o crime apenas usei a verdade, não foi premeditado e a arma
apenas de oportunidade, mas ambos foram perfeitos.
Cenário 3, hospício. Poderia ter sido o Júlio de
Matos, ou outro qualquer, mas a casa dos meus pais pareceu-me melhor, mais
calmo e saudável porque fica no campo. E é aqui que estou nesta história, dois
dias depois de ter enfiado numa mochila os meus livros preferidos, no espaço que
sobrou umas mudas de roupa; pendurado a mochila ao ombro; mandado comigo e com
ela para um avião; chorado baba e ranho; implorado às hospedeiras por só mais
uma garrafinha-miniatura de qualquer líquido que contivesse teor de álcool (as
baixas pressões baixam proporcionalmente o meu nível de exigência por
qualidade); incomodando de forma visível vários passageiros do mesmo voo;
continuando a implorar por mais um bocadinho de álcool, para no fim descobrir
que as hospedeiras não se importavam com o meu desconforto como eu não me
importava com o dos restantes passageiros.
Fui recebida por um pai e uma mãe de sorriso no
rosto e braços abertos, as únicas duas pessoas clinicamente sãs na minha
família, numa casa que mais se assemelha a um hotel e recheada com demasiadas
decorações de Natal. O meu quarto no topo de uma das torres, tal e qual Rapunzel,
demasiado pequeno e sombrio para qualquer outra pessoas que não fosse eu,
continuava com os mesmos tons verde e bege nas paredes, as mesmas madeira
velhas, estantes empenadas, gavetas que não abrem, portas que não fecham, tudo
à espera do meu regresso como se nunca tivesse havido dúvida de que ele iria
acontecer. O quarto era como os meus pais, e o resto da família, todos lá para
o que desse e viesse, nenhum deles surpreendido por me acolher de volta.
Saí pela janela e sentei-me no telhado. O resto do
mundo podia estar a mudar a cada minuto, mas não neste sítio. O mesmo cenário de
Natal de todas as minhas memórias de Natal. As luzes, os brilhantes, os
cintilantes, os vermelhos, castanhos, verdes, dourados, as árvores, as estradas
a adormecer, os cheiros das lareiras, nuvens em formas de animais pela
imaginação.
Nos escassos minutos de dia em que o sol e a lua
cruzam olhares, o vilarejo que me viu nascer e a tentar crescer a cada dia que
se seguiu a esse, era o cenário perfeito do Natal. Sem as vozes irritantes que
me vinham a ensurdecer desde o tempo que ali tinha estado pela última vez, há
demasiado tempo para valer a pena convertê-lo em anos, o meu espírito parecia
ter novamente espaço para existir no meu corpo sem necessidade de se encolher
ou lutar por ar para sobreviver.
Talvez seja verdade o que ouvi dizer, sobre os
momentos em que precisamos de abrir mão de algumas coisas, de destruir, para
criar espaço para tudo o que realmente somos poder existir.
Reparei que finalmente já não era enxovalhada
entre um ruminar do passado e um imaginar do futuro, remorsos e terror, perdas e
possibilidades. Estava de volta, presente, era o momento para o escrever.
Enquanto via o sol a desaparecer, lembrei-me de
uma história contada por um índio que não tenho a certeza se foi realmente ele
quem me contou ou se fui eu mesma quem inventou o índio (houve uma altura em
que as hospedeiras de bordo se importavam com o meu bem-estar e não sabiam da
medicação que eu também trazia no estômago). Nessa história, o ancião de uma
tribo contou ao pequeno índio sobre uma batalha que
decorre dentro de todas as pessoas. Ele disse, ‘Meu filho, a batalha é entre
dois lobos, eles vivem dentro de todos nós. Um deles é tristeza, arrependimento,
arrogância, condescendência, culpa, ressentimento, mentiras. O outro lobo é
alegria, paz, amor, esperança, serenidade, compaixão, bondade, verdade.’ O pequeno índio pensou sobre a
batalha e perguntou, ‘Qual é o lobo que ganha?’ O ancião respondeu
simplesmente, ‘Aquele que alimentares.’
Com o início da noite, o sino da igreja fez-se
ouvir, o silêncio ecoou as badaladas pelos telhados de Natal. Pensei mais uma
vez sobre o que fiz, em mim, nos lobos.
Sobre a autora
Liliana Lavado é natural de Estarreja, licenciada em Gestão de Marketing
pelo IPAM, com uma especialização em «Strategic Marketing in Action»
pelo IMD na Suíça. Viveu em Lisboa durante 7 anos e vive actualmente na
Suíça. A sua carreira profissional tem passado pelas áreas logística e
marketing operacional em diferentes multinacionais, como a Nespresso.
Começou a escrever quando estava na faculdade e, depois de repetidas
visitas a livrarias sem encontrar nenhum livro que lhe apetecesse ler,
resolveu que o melhor a fazer era pôr mãos à obra e escrevê- lo ela
mesma.
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