ESPECIAL NATAL | CONTO: O Natal do Sargento Ulianov | PEDRO GARCIA ROSADO
By Vera Carregueira - 22:50
O Natal do Sargento Ulianov
por Pedro Garcia Rosado
(Moscovo, 1984)
Olho para o espelho e vejo o rosto límpido de um homem que
tenta dissimular a sua juventude. Só tenho vinte e dois anos mas quero parecer
mais velho. Não quero ter estas faces onde a barba alourada demora a crescer,
não quero ter a palidez de um rosto adolescente, nem os olhos verdes que
parecem fugir do mundo. E gostava de ter um espelho à minha altura, que não me
cortasse a parte de cima da cabeça.
Acabei de ser promovido a sargento no Comité para a Segurança
do Estado e dizem-me que sou um dos mais jovens elementos do KGB a alcançar tão
rapidamente esta posição.
— Mereceste-a — disse-me o camarada Dolbin. Vladislav Andreevich
Dolbin. O major Dolbin, um histórico do KGB. Esteve comigo no último exercício.
Impassível, enquanto eu enfrentava o meu oponente: um homem ágil, vindo não sei
de onde. Talvez fosse um prisioneiro ansioso por se escapar. Talvez lhe
tivessem prometido que o deixariam escapar-se se me vencesse. Tinha preparação
militar e movia-se bem. Se não estivesse tão magro seria talvez maior do que
eu. Mas não venceu. Deixei-o no chão, onde caiu, com o pescoço partido.
A minha nomeação foi bem recebida pela maioria dos meus
camaradas. Nas fileiras da linha da frente da defesa do socialismo não há lugar
a manifestações de inveja ou a rivalidades. Todos nos esforçamos para ir mais
longe, para darmos o melhor de nós, em defesa da Pátria, do povo e do Partido. O
esforço é colectivo e devemos ficar sempre satisfeitos quando um de nós se
mostra melhor do que os outros. A ambição é legítima, mas sempre em nome do bem
comum.
E é isso que agora me faz querer ir mais longe. Quero ir
combater para o Afeganistão e ajudar aí os nossos camaradas. A guerra vai no
seu quinto ano e eu sei que a vamos vencer. E também quero ir para o 1.º
Directório Principal e combater os imperialistas na terra deles. Preciso de
sair de Moscovo, do ambiente sufocante da minha família. «Tens de ter
paciência. Tens de ser paciente», tem-me dito Dolbin. Mas eu não sou um homem
paciente. E começo a acreditar que não preciso de ter paciência. Os melhores
não precisam de ter paciência.
— Ulianov.
Os meus olhos libertam-se do meu reflexo no espelho. Fixam-se
nas paredes descoradas, na prateleira suja, na matrioska de madeira lascada com as suas pequenas réplicas no
interior. Tem um rosto de babushka,
uma expressão agradável de olhos estranhamente vazios. Tem como cores
dominantes o vermelho, o azul e o branco. Na sala há outra igual, só que um
pouco maior. Aleksandr Orlov olhou muitas vezes para ela enquanto eu o
interrogava e depois quando o informei de que o levaria detido. Mas nunca
consegui perceber porquê. Até as abri, tirando as pequenas bonecas de dentro
das bonecas maiores. Os motivos alegóricos são incompreensíveis. As cores são
sempre as mesmas e a última boneca da matrioska
da sala só era diferente numa coisa: mostrava a águia de duas cabeças da antiga
bandeira imperial. Se não houvesse mais nada que servisse para acusar Orlov,
poderia ter dado jeito.
— Ulianov... — É Yulia Orlov que me chama, mais uma vez. A
voz da filha do traidor Orlov percorre o corredor escuro e bafiento e vem ter
comigo à casa-de-banho. É uma voz quente, insinuante, convidativa.
Yulia é uma rapariga com corpo de mulher. Foram os olhos
escuros dela, de menina, que me seduziram. Yulia Orlov tem menos três anos do
que eu mas não parece. É uma mulher adulta, responsável e livre. Mas arrisca-se
a deixar de ser livre. Eu não devia ter correspondido à sua sedução mas os pais
dela já estão presos bem longe de Moscovo e a culpa deles está estabelecida. E
ela nunca me pediu que fizesse alguma coisa por eles. E até foi o meu camarada
Dolbin que me disse para me aproximar dela. E eu aproximei-me. Foi sensato?
Pelo menos saboroso foi. Mas não sei mais sobre as
acvtividades subversivas dos Orlovs.
— Ulianov — insiste ela.
Yulia trata-me pela minha alcunha, apesar de eu lhe ter dito
que me devia tratar pelo meu nome próprio ou, como se não fôssemos tão íntimos,
pelo nome próprio e pelo patronímico. Ulianov não é o meu nome. O meu
verdadeiro nome é Serguei Denisovich Tchekhov. È uma honra que me tratem por
«Ulianov», claro. Ulianov era o nome de família do grande Lenine, de Vladimir
Ilitch Ulianov que ganhou o nome de Lenine depois de ter sido desterrado pelos
czaristas para a Sibéria, para as margens do rio Lena. Há quem me ache parecido
com ele, devido às minhas maçãs do rosto, aos meus olhos semi-amendoados e à
firmeza das minhas convicções. Firmes, sempre, desde o berço, diz a minha mãe. Com
uma convicção de aço. Talvez por influência do meu pai, antes de ele partir
para a frente durante a Grande Guerra Patriótica, de onde veio perturbado para
sempre. Mas também devido aos livros do grande combatente e escritor Arkady
Gaidar.
— Quero passar o Natal contigo — diz Yulia.
Pela voz, ainda está na cama, no quarto dos pais. Conquistou
recentemente esse espaço e foi para lá que ela me levou logo na primeira noite.
Yulia dormia na sala porque os pais nunca conseguiram
arranjar uma casa maior que não tivesse só uma cozinha acanhada, uma sala e o
quarto. O pai, quadro superior do Instituto de Engenharia Electrónica, poderia
ter conseguido uma casa mais adequada à sua posição. Mas nunca quis. Talvez por
motivos tácticos, porque decerto disporia de dinheiro para isso, recebido em
paga das suas actividades subversivas.
Quando o prendi, levando também a mulher dele (que decerto
estaria a par do que ele fazia), Yulia ocupou-lhes o quarto e a cama. Disse que
era apenas provisoriamente, por esperar que eles regressem. Eu, no lugar dela,
não esperaria. Mas não tive a coragem de lho dizer.
Foi há um mês que lhes bati à porta. A investigação ficara
concluída: o pai de Natalyia, Aleksandr Orlov, mantivera contactos frequentes
com um espião americano que se apresentara em Moscovo como jornalista, a quem
teria contado alguns segredos científicos, segundo os elementos transmitidos ao
meu departamento pelo 1.º Directório Principal.
Orlov negara tudo, claro. E a mulher também. Interroguei-os
em casa durante um dia inteiro. Depois foram para a Lubianka, onde estiveram
durante duas semanas. Foram exaustivamente interrogados e já não apenas por
mim. E depois seguiram para um campo de trabalho, à espera de julgamento. Mas
as confissões dos dois, mesmo as que obtivemos mediante alguma persuasão, ainda
não são suficientes. O camarada Dolbin sugeriu que a filha — Yulia Orlov —
poderia ajudar-nos. Temos de saber mais: quem são os cúmplices, quem são as
suas ligações no estrangeiro. «É importante», dissera Dolbin.
Já passaram duas semanas desde que eles foram levados da
Lubianka. E Dolbin só me perguntou uma vez se lhe arranjava mais pormenores
para a acusação formal ao casal Orlov. E eu tentei.
E agora… O Natal?
Ainda estamos em Novembro. Faltam cinco semanas para o Natal
tradicional. Mas nós preferimos festejar o Natal no final do ano e no início de
Janeiro. Na União Soviética, os festejos associados ao Natal decorrem a partir
de 31 de Dezembro. A igreja ortodoxa celebra-o em 7 de Janeiro. Só uma minoria,
mais religiosa, é que celebra o Natal em 25 de Dezembro. O Estado deixa que o
façam e que se inspirem em algumas lendas antigas e numa ideia do Pai Natal que
o distancia da religião e o torna mais parecido com um velho camarada
bonacheirão.
O pedido de Yulia é estranho. Em minha casa não se festeja o
Natal. A minha mãe tentou mas desistiu. Eu e a minha irmã, Irina, nunca
percebemos o alcance desses festejos. Yulia deve pensar de outra maneira. Ainda
há muitas tradições que não desapareceram por completo e o que ela me pede pode
ser uma forma de dizer que quer continuar comigo, de prolongar o nosso convívio
que eu não sei se tem futuro. Já não falamos dos pais mas não temos deixado de
conversar. Nem de utilizar a cama dos pais dela. Damo-nos bem. Podemos
continuar a dar-nos bem até ao Natal, e posteriormente. Não faltam motivos.
Yulia Orlov é uma mulher de cabelos pretos. Quem olhe com
mais atenção para o seu rosto poderá imaginar nele traços semitas. Mas eu
próprio investiguei os antecedentes familiares dos Orlovs e não encontrei
nenhuma ligação judaica. Não os ajudaria, se essa ligação existisse. Yulia tem
lábios carnudos e um corpo também atraente. As mãos, de dedos compridos, são
bonitas e foi por elas que tudo começou.
Justifiquei a nossa intimidade perante mim próprio (eu sou o meu
mais severo juiz) com a possibilidade de tirar a limpo se Yulia Orlov faria parte
da conspiração. Tanto tempo depois, não consegui satisfazer a minha
curiosidade. Mas ainda suspeito de que ela sabe mais alguma coisa. Ou será um
pretexto para continuar a vê-la? É uma dúvida com que posso continuar a viver.
— Ouviste o que eu disse, Ulianov? — insiste Yulia.
Visto as calças e saio da casa de banho, percorrendo
lentamente o corredor, sem olhar para a sala, parando à porta do quarto. Sinto
o frio do chão de madeira fina a subir-me pelos pés descalços.
Yulia, embrulhada num cobertor, entreabriu a janela e, aí
parada, parece estremecer de frio. Esteve a nevar mas agora o céu está
relativamente limpo. O prédio é alto, as paredes são finas e o pequeno
apartamento parece sempre muito frio. Só com as calças vestidas tenho frio.
Habituei-me a suportar temperaturas muito baixas mas agora arrefeci. Ou,
pensando melhor, pode ter sido o meu sangue que arrefeceu.
— O Natal porquê? — pergunto-lhe.
Yulia volta-se para mim e tem de levantar a cabeça para que
os seus olhos encontrem os meus. Depois encolhe os ombros, esboçando um
sorriso.
— Acho que podíamos passar mais tempo juntos — responde,
finalmente.
Eis o motivo. E não temos passado?! Observo-a, em silêncio.
Não é uma declaração de amor que quero ouvir neste momento.
— Gosto de ti — declara Yulia, estremecendo e aconchegando-se
com o cobertor. Na sua simplicidade, a declaração é quase comovente. Agora
seria a minha vez de dizer alguma coisa parecida (eu também gosto dela, claro),
de regressarmos à cama ou de tomarmos o pequeno-almoço. — E o Natal é sempre
uma ocasião especial.
— Não, não é — respondo-lhe, dirigindo-me para a cadeira onde
deixei o resto da roupa, sem a fitar.
Yulia fica em silêncio.
— Gostava mesmo de poder estar mais tempo contigo — declara
de repente. Olho para ela. Eu passo o dia na Lubianka, posso ir beber com os
meus camaradas ou voltar para casa dos meus pais (que é o que me menos me
apetece). Yulia tem passado os seus dias em casa. É estudante universitária mas
não estuda nem tem aulas que pareça frequentar. — Sinto-me só. E tu tens-me
ajudado. Nos teus braços, eu voo. Como uma águia. — Os olhos ficam de um negro
reluzente. Talvez seja cigana. O que também não a favorece. Nem a nossa
relação.
E isso inquieta-me: a nossa ligação foi o resultado de uma
atracção entre dois jovens, em circunstâncias peculiares, não mais do que isso.
E não sei se tem futuro. Além disso, um revolucionário, como eu sou, não pode
dar-se ao luxo de aplicar planos quinquenais às suas relações.
Só lhe respondo:
— Não posso estar mais tempo contigo. — Estou a ser
completamente sincero. E a proteger-me. — Visto a camisa e começo a abotoá-la.
— Ajuda-me — torna Yulia, com um tom de urgência na voz.
Fico imóvel, e a camisa fica por abotoar.
— Que queres? — pergunto-lhe.
— Os meus pais. Liberta-os.
Respiro fundo.
— Os teus pais são suspeitos de crimes contra o Estado
soviético — digo-lhe, pausadamente. — Serão julgados e poderão defender-se. Se
forem declarados inocentes, sairão em liberdade.
— Mas tu podias ajudá-los. Eu não valho isso?
Fico em silêncio. Yulia nunca me pediu que ajudasse os pais.
E decidiu fazê-loagora? Não é desse modo que passarei mais tempo com ela.
— Foi para isso que me quiseste na tua cama? — pergunto-lhe.
— Eu gosto de ti — afirma. Até está a dizer a verdade. Mas o que o meu povo e a minha pátria esperam de mim
não são emoções mas acções. Ao dizer o que disse, Yulia alterou o que existia
entre nós: se quis aproximar-se assim de mim foi porque me viu como um inimigo
que precisava de vencer. Não pela força mas pela sedução. Percebo-o agora. E
não gosto.
— Sabias das actividades subversivas do teu pai? —
pergunto-lhe mais uma vez. Foi uma das minhas primeiras perguntas. Yulia disse
sempre que não. Os olhos dela não sugerem que a resposta seja diferente.
— Não — diz ela, por fim. — Montaram-lhes uma armadilha. Foi
só isso. Esperava que o viesses a perceber. — O rosto altera-se. Yulia, a
sedutora, desapareceu.
Os olhos traem-me. Têm uma estranha característica: a sua cor
verde torna-se vagamente azul quando me sinto impelido à acção. E quando me
enfureço.
— Foi por isso que me quiseste contigo? Que me levaste para a
cama… deles? — pergunto, fechando os punhos. As minhas mãos fechadas metem
medo, já mo disseram. São grandes demais.
Yulia recua. Tem medo. Terá visto os meus olhos quando lhes
entrei em casa com os meus camaradas.
— Ajuda-me e eu ajudo-te — torna Yulia.
— Como?! — Ela traiu-me e, ao trair-me, traiu o povo e a
pátria. Não a posso ajudar.
— Talvez possa contar-te… algumas coisas — diz Yulia. — Se me
ajudares. — Baixa o tom de voz, como se quisesse criar um ambiente de maior
intimidade.
Estendo os braços e agarro-a pelos ombros.
— Que queres contar-me?
Yulia sorri e afirma, suavemente:
— Somos uma família de águias, Ulianov. Pairamos acima das
coisas. E não estamos sozinhos. E até eu...
Seguro-a com toda a minha força. A dor silencia-a. Ergo-a
pelos ombros, apertando-os. Sinto-lhe os ossos dos braços a ceder. Yulia começa
a gritar.
Encosto-a à janela, que se abre mais, e depois deito-a no
parapeito. O ar frio cega-me. Ou será a fúria que sinto? Yulia cala-se. O rosto
transfigura-se: medo. Tem medo.
E os meus olhos? Ainda estarão azuis?
— O que mudou? — pergunto-lhe. — Ou o que queres contar-me agora
são mentiras? — Empurro-a mais para fora da janela.
— Não... — murmura Yulia. — Tens razão. Não tenho mais nada que
te possa dizer. Desculpa-me. Só queria que me ajudasses. — Fecha os olhos. —
Deixa-me. Prometo que não direi a ninguém o que se passou connosco.
Estendo os braços. E depois largo-a.
— Se és uma águia… voa! — exclamo.
Ela já não deve ter ouvido as minhas palavras. O cobertor
esvoaça, levado pelo vento. Demora algum tempo até ouvir o choque do corpo dela
na rua. E um grito distante. De surpresa, ou de susto.
Espreito pela janela. O cobertor cai suavemente ao longe. O
corpo de Yulia ficou torto. A cabeça está numa posição estranha. Há sangue na
neve suja.
Dirijo-me à sala. Aleksandr Orlov tinha conseguido arranjar
um telefone. Ligo para o camarada Dolbin, na Lubianka.
— Morreu uma inimiga do povo — declaro.
Acabo de me vestir. Ponho o boné azul de sargento do KGB, de
pala preta, com a foice e o martelo emoldurados por uma coroa de louros. Ajeito-o,
ao espelho. Os meus olhos estão de novo verdes. Gosto do que vejo.
Desço as escadas. Os meus camaradas hão de estar a chegar. E
eu tenho de ir escrever o relatório.
«O Natal do Sargento Ulianov» é o prólogo de Ulianov — A Conspiração das Águias, uma
história passada em Moscovo quando Ulianov ainda fazia parte do KGB, com
publicação prevista para 2015
Sobre o Autor:
Pedro Garcia Rosado nasceu em Lisboa em 1955, residindo agora no concelho de Caldas da Rainha. Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa. É escritor e tradutor profissional, com mais de 40 livros traduzidos. Foi jornalista no Expresso, Diário de Notícias, e revista Grande Reportagem, crítico de cinema, assessor e consultor de comunicação.
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