Do Coração*
* Um conto de Natal… muahahAHAHAHAH!!!
Manuel Alves
Ela olhou-o, a dúvida de uma escolha que era difícil todos os anos.
Ele olhou-a de volta, sem vontade de adivinhar o que ela queria e com esperança de que, este ano, não tivesse de arriscar palpite e, mais uma vez, errar.
— Então, já sabes o que queres? — disse ele.
— Sei — disse ela, sorrisinho de menininha e mãos dadas na frente do peito.
Ele parou na expressão dela, um momento para permitir aquele pestanejar exagerado de cartoon. Ela não ia parar de fazer aquilo até ele perguntar. Suspirou resignação.
— O quê?
— O teu coração! — disse ela, um pulinho de pura satisfação.
Ele esvaziou num suspiro derrotado. Tinha de a deixar acabar de bater palminhas.
— Vá, a sério — disse ele.
Ela parou, entusiasmo arruinado na linha oblíqua dos lábios comprimidos. Os homens eram todos uns idiotas. Respiravam, comiam e bebiam idiotice. Ao fim de duas gerações, três, a esticar a sorte, a espécie humana estaria extinta por causa da idiotice dos homens. Era assim tão difícil compreender uma mulher? Quando uma mulher diz que quer o coração de um homem, não é óbvio que o que ela quer mesmo é tudo? Óbvio que tudo significava um modesto-mas-se-possível-caro anelzinho de noivado. Quatro anos juntos. Três Natais de presentes errados. Era a altura certa, o aniversário da relação. Óbvio que era óbvio. Bah!
— Adivinha — disse ela, já menos interessada.
Ele fechou os olhos, um instante zen a massajar a cana do nariz com o indicador e o polegar. Situação impossível. Preso por ter cão e… por qualquer razão que ela considerasse válida. O costume.
— Honestidade — disse ele. — Gostaste do perfume, no ano passado?
Ela cruzou os braços, entortou o nariz e rolou os olhos para o tecto.
— Olha… — disse ela, a calcular a medida certa de honestidade que um ego podia aguentar. — Eu não podia adivinhar que era um caso raro de hipersensibilidade cutânea a álcool cinâmico.
— Nem eu.
Ela reforçou o nó dos braços contra o peito e soprou o começo de uma senhora irritação.
— E o que me dizes do livro, há dois anos?
— Não sei qual foi a tua ideia — disse ela, indicador direito disparado do aperto dos braços. — Se alguma vez tivesses reparado nos livros que eu leio, não me oferecias pornografia para mamãs.
— Não era caso para queimares o livro.
— Antes, esfaqueei-o.
Olharam-se num jogo do sério, um a desafiar o outro a rir primeiro.
— E há três anos…
— Já percebi! — disse ela, mãos em sinal de alto.
— É mais fácil dizeres-me o que queres.
— Oh! Posso descer já as escadas e dizer o que quero ao primeiro homem que encontrar na rua. Estamos juntos há quatro anos. Tu devias saber.
— Achas mesmo que isso acontece fora de livros de pornografia para mamãs?
Ela endireitou a costas e esticou o pescoço em irritação muito vertical, punhos fechados contra as pernas.
Ele revolveu memórias, à velocidade da luz, na busca do melhor pedido de desculpas de todos os tempos ou, pelo menos, um que tenha funcionado razoavelmente em situações de igual aperto. Aquele olhar de rainha do gelo que aniquilava icebergs com um sopro de narinas podia muito bem ser o início da concretização de todas as profecias que prometiam o fim do mundo.
— E tu sabes o que eu quero? — disse ele.
Ele tinha um pedido de desculpas na ponta da língua, mas obviamente algo se perdeu no processo complicado da fala. Era bem provável que os homens tivessem um defeito genético que os transformava em idiotas sempre que tentavam apresentar pedidos de desculpas às mulheres.
— Olha, pode ser qualquer coisa… — disse ela.
— Isso ainda é pior do que o adivinha.
— O que quiseres, se é que queres oferecer-me alguma coisa…
Ela cruzou os braços e voltou-se para a janela, passos irritados até ao vidro. Olhou para a rua, nem durante um segundo, os nervos a ferver a paciência. Voltou ao sofá, raspou o iPod da almofada e espetou os fones nos ouvidos. Arredondou os olhos em declaração clara, clarinha. Não. Quero. Ouvir. A. Tua. Voz. E voltou para a janela.
Ele afundou-se no sofá, um suspiro de quem fez tudo mal dentro daquilo que podia ser mal feito. Agora ia levar com a técnica já nem posso olhar para ti. Olhou para os dois quartos que restavam da maçã descascada no prato em desequilíbrio sobre o braço do sofá. Descobrir as vontades das mulheres devia ser tão simples como decidir qual dos dois pedaços comer primeiro. Espetou um com a faca e trincou uma ponta. Ou resolvia aquilo em cinco minutos ou a rainha do gelo não ia derreter a tempo de algum calorzinho no réveillon. Até sentiu um arrepio. Frio a sério.
A Coisa observou dentro da árvore de Natal, três rasgos de olhos brilhantes camuflados pelo piscar das luzes. Ah, a alegria simples e desinteressada do espírito natalício. A cada ano, o esforço era menor e a tarefa de semear a discórdia começava a perder aquela satisfação medieval da confissão arrancada a ferros. As pessoas já faziam quase tudo sozinhas. Zangavam-se à mínima irritação, coisas insignificantes a justificar batalhas de egos gigantescos. Discórdia demasiado fácil. Enfim… mais um ano, mais um degrau acima no esforço criativo. Mais uns minutos de observação e acabaria por se lembrar de alguma inovação genial.
Ele pousou a faca no prato e tombou para o lado, cotovelo afundado numa almofada do sofá e o resto da maçã a fazer saliva na boca. Tentou espreitar a cara dela no reflexo da janela.
Ela apanhou a jogada e chegou-se mais ao vidro. Era bom que ele não demorasse muito a levantar-se para lhe massajar os ombros. Quer dizer, a tentativa atabalhoada de uma massagem. A falta de jeito do costume. Ele só se esforçava com as mãos quando queria festa. E com a língua, então, só quando queria cerimónia real.
Ele endireitou-se no sofá, perna dobrada por baixo da outra, e voltou-se para o lado onde estava em repouso sagrado o comando da Playstation. A ideia de só um joguinho para aliviar o stress saiu-lhe do pensamento e ele sentiu-se um bocado estúpido. Ela é que lhe tinha oferecido a consola. Afinal, ela até era mesmo capaz de saber o que ele queria. Merecia um pedido de desculpas sincero. Arrepiou-se com um frio nas costas. Voltou-se para a árvore de Natal, e a neve falsa que tinha saído da lata de spray durante os arranjos pareceu-lhe mesmo real e mesmo fria.
A Coisa manteve-se imóvel dentro da árvore, os três olhos brilhantes a abrir e a fechar em sequência coordenada com a intermitência das luzes. Tinha de fazer o esforço criativo rapidamente. Regressar sem uma quota razoável de discórdia era arriscar o pior castigo dos trinta e seis planetas, quarenta e duas luas e oito asteróides habitados na vizinhança cósmica. Nenhuma Coisa jamais recuperara a sanidade depois de servir durante um ano como ajudante do Pai Natal. Do verdadeiro Pai Natal. O canibal. Arrepio. Tinha de haver discórdia. Concentrou os três olhos nos dois do humano.
Ele sentiu uma tontura de visão desfocada e equilibrou-se com uma mão no braço do sofá, o gesto cego que quase derrubou o prato, a faca e o resto da maçã. Pestanejou para tentar apagar os pontinhos luminosos a flutuar como grãos de pó em contraluz. Fixar luzes directamente era uma estupidez que desafiava a lógica. O que, vendo bem, era o que a estupidez fazia na generalidade. Tal como a estupidez de ainda não se ter levantado para pedir desculpa. E, por acaso, acabara mesmo de lhe ocorrer o pedido de desculpas perfeito. Um presente. Até era capaz de ver a imagem nitidamente gravada nas retinas, como cartaz luminoso a transbordar de propaganda natalícia. O frio nas costas deu lugar ao calor no peito. Ele sabia o que ela queria.
Ela esquinou o olhar para o reflexo na janela. Já estava a tardar. Estava a ficar difícil fingir que retirava alguma calma contemplativa da faixa de 170 minutos com instrumental de piano para harmonia e repouso. Se ele demorava mais um segundo, um segundinho que fosse… Bem, era melhor nem pensar na dura abstinência sexual dos próximos vinte mil anos. Pronto, ele já se tinha levantado do sofá. Um pequeno passo para o Homem, um salto gigantesco para a Humildade. Agora era só mais uns passinhos até à janela, para a massagem nos ombros. Não esquecer a massagem, menino. Vá, à espera de quê? Ah, bom, temos movimento. Mas o que é que ele está a…? O reflexo era uma imagem embaciada. Ela voltou-se. O terror estrangulou a voz no primeiro instante.
Ele sorriu, faca aos pés, buraco no peito e o presente nas mãos.
— O meu coração…
O grito devorou a tranquilidade da melodia.
Dentro da árvore de Natal, a Coisa sorriu satisfação privada. A tragédia era o delicioso desfecho da discórdia. E ainda faltavam duas semanas para o Natal.
Sobre o autor:
"MANUEL ALVES escreve palavras e desenha desenhos (o que esclarece completamente tudo o que precisa de ser completamente esclarecido). Algumas palavras juntam-se em muitas, muitas, muitas linhas de romances para crescidos (mais ou menos), como A INVENÇÃO DE UM CONTO DE FADAS e TERRA FRIA. E outras palavras juntam-se a desenhos em histórias como as da LILI, para menos crescidos (e também para mais crescidos… basicamente para toda a gente). Nascido em Portugal, MANUEL ALVES tem a idade que pode ser calculada a partir da data de nascimento e é (aparentemente) humano, mas vive a maior parte do tempo afastado da civilização, num daqueles lugares místicos aos quais as pessoas costumam chamar carinhosamente cú de judas (de onde saem os arco-íris)."
1 comentários
As luzes da árvore de Natal nunca me enganaram. :D
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