O Regressado
por Carla M. Soares
Abriu a porta e saiu para a noite fria, abandonando atrás de si o calor da
taberna e os sons familiares dos homens, risos e ruídos, pequenas discussões
sem propósito nem consequência, o abandonar das tensões e dos medos nessa bolha
de ilusória protecção, antes do regresso nocturno à família ou à casa vazia. O
odor da neve substituiu o perfume azedo do vinho e ele respirou fundo.
Arrependeu-se assim que o ar gelado queimou o seu caminho até aos pulmões, lhe
afastou a indiferença do álcool como quem afasta de repente uma cortina e lhe
revelou a exaustão absoluta e impiedosa que há muito lhe contraía os músculos.
Espalmou a mão sobre a porta escura, agora fechada, para sentir a rugosidade
antiga da madeira. Tinha vontade de ficar ali, onde não
importava.
- Mas é preciso
regressar.
Fora longo o caminho, quilómetros e quilómetros de comboio e a pé de França
para a Serra, com essas palavras na boca e um desejo vago dos lugares e cheiros
familiares. Queria chegar antes do Natal, era preciso um prazo a empurrá-lo e
era quase tarde demais, ou talvez fosse tarde demais desde que partira, um no
meio dos tantos que nunca regressariam. Por isso é que era importante voltar.
Porque estava vivo. Voltou as costas à segurança da taberna. Os sons abafados das
botas a esmagar a neve estouraram-lhe nos ouvidos. Agachou-se, contendo a muito
custo o impulso para se atirar para trás de uma carroça parada na estrada e, ofegante,
estudou a escuridão da rua e as janelas iluminadas, à procura da ameaça. A
cabeça dizia-lhe que estava seguro, estava em casa, era Natal, mas corria-lhe
pelas costas um suor frio e familiar. Fitou com incredulidade os pés, a
desenhar marcas na brancura inviolada do nevão acabado de cair. Neve branca e limpa de lama e porcaria. Neve
da sua terra no cimo da Serra.
«Não é nada. Não é nada.»
As palavras não diminuiram o ritmo do tambor de guerra que lhe rufava no
peito. Tanto medo de ter dentro uma reserva eterna de memórias vivas. Levantou-se devagar, temendo que o vissem de
uma janela ou da taberna. Não queria que viessem saber o que se passava, não era
nada, só a batalha no sangue e nos ouvidos. Os estampidos, as explosões, os
gritos, a morte que, no seu silêncio, gritava mais alto que as sirenes.
«Não é nada, vai para casa enquanto podes.»
Ajeitou o casacão coçado que lhe fora passado de outro homem. Usava há
muitos meses o casaco de um fantasma, grande demais para um homem como ele, que
nunca fora alto nem forte e se via reduzido a pele e osso pelo muito tempo de
trincheira, fome, frio e medo. Tantas vezes sonhara com a sopa de couves da
mãe, com o cabrito assado do Natal. Tantas vezes tentara fechar os olhos e
sentir na língua o sabor desse repasto… tantas vezes, em vão. Sentia o sabor da
ração magra, da sua própria fome, da terra enlameada, da bosta e do mijo, da
pólvora, do gás mostarda que deixava à sua passagem sempre um vestígio que se
colava à garganta. Por vezes, achava que não se livraria dele e morreria
envenenado um dia, daí a dez anos ou vinte ou uma centena. Que importava. Ia para
casa. Ia para casa ou chegaria atrasado. Ignorou a escuridão e pôs um pé à
frente do outro, como se fazia em cada batalha, o medo apertado na barriga e as
pernas obedientes.
Nada mudara na forma como o granito se agachava contra o chão nem no modo
como a luz do fogo na chaminé se escondia, tímida, por trás de portadas cerradas
contra o frio do Inverno serrano. Tinha a mesma forma tosca e escura, o telhado
irregular acachapado a deixar adivinhar a grossura das paredes de pedra que o
suportavam, uma única porta cujas fendas a mãe escorava com feno contra as rajadas
frias. Trepou os últimos metros de trilho escorregadio a tremer, quase sem
sentir os pés e a mãos, sem saber se o que o deixava dormente era o frio. A
casa parecia esconder-se dele. Talvez lá dentro também se escondessem da
certeza de que filho e marido não regressaria. Do medo de que regressasse.
Talvez não o reconhecessem, talvez já nem o quisessem, mãe e mulher tanto tempo
abandonadas à sua sorte.
«E volto-lhes assim.»
Por fora vinha mais mirrado do que quando pastoreava na serra e se
alimentava de pão, vinho, cebola, um naco de toucinho ou queijo, mas trazia o
mesmo nariz afilado, as mesmas orelhas que se avermelhavam por tudo e por nada,
a mesma face sempre escurecida por uma promessa de barba. Era por dentro que
ele era outro, e esse saía-lhe pelos olhos e pela voz tantas vezes que nem
sempre sabia qual seria ainda.
- É dos homens que trago comigo. – murmurou. Dantes trazia-se apenas a si e
ao espaço aberto, trazia a melancolia e a a alegria de dias infindáveis entre o
céu, o solo duro da montanha e os seus animais, noites entre as pernas da
mulher. Agora eram as caras sem nome, as formas sem cara, os pedaços de gente
que o preenchiam. Um ano e meio era pouco tempo no espaço de uma vida, muito
tempo apertado numa trincheira, desde que chegara a França que não sabia de si
no meio dos retalhos dos outros e agora não sabia bem quem tinham devolvido à
família.
Chegou-lhe o perfume reconfortante da lenha queimada e o aroma delicioso do
cabrito, um feitiço a chamá-lo. Andou mais depressa quase sem dar por isso e bateu
à porta, com medo de abri‑la sem aviso e dar de caras com a caçadeira do pai
com a cara da mãe por trás. A cara da mãe na ponta de uma caçadeira era uma
qualquer cara alemã. Não, a cara da mãe, escura e mirrada, nunca seria uma
grande e vermelha cara alemã, nem na noite de Natal, corada do vinho e do calor
da lareira. Tinha visto muitas dessas caras coradas a sorrir como sorria a mãe
no Natal, na consoada em que tinham cantado todos de um e do outro lado da terra
de ninguém, espreitando do fundo das trincheiras, lembrava-se da estranheza das
vozes, do medo enquanto uns e outros atravessavam essa terra de ninguém e se
encontravam no meio, da impressão das palmas calejadas das mãos inimigas nas
suas, as mãos eram iguais afinal ao trocar votos de Festas Felizes, a mesma
alegria dorida, ao festejar sem cabrito nem família. Tinham sido companheiros
por um instante, e matado uns aos outros dias depois, disparando como se
pedissem perdão. Ao seu lado tombara no primeiro dia do ano um homem sem pernas,
mais adiante um caíra por ser demasiado lento com a máscara de gás. Estremeceu,
engoliu o sabor a morte que lhe subia das entranhas e bateu com mais força.
- Ó da casa! Abram, que sou eu. Ó minha mãe, é o João Tomé. Fidelina, sou
eu… acho que sou eu. – Primeiro gritou, depois já não. Soprava com a testa
encostada à aspereza confortável da madeira. – Minha mãe, abra a porta que
tenho frio.
Abriu-se uma fresta e um olho escuro em meia cara muito pálida e lisa
espreitou, desconfiado.
- Fidelina.
- João Tomé, és
mesmo tu?
A porta abriu-se de repente e ele viu-se puxado para dentro, para a luz
meiga das chamas, por mãos incrédulas que lhe apertaram o rosto, lhe deslizaram
pelos ombros, a comprovar‑lhe a existência, a assegurar‑se de que era palpável.
Sentiu-se um fantasma.
- Rosa, é mesmo o
seu filho!
Exclamações. Um grito. Braços sobre ele, uma gaiola de calor em seu redor,
uma gaiola de lágrimas femininas, o seu nome gritado com alegria, a sua
condição de filho e marido e regressado. Entrou em pânico. Por um instante
lutou contra elas, empurrou mãe e mulher, que na sua alegria espantada mal
notaram a resistência. Forçou-se a aquietar o corpo, à espera que amainasse
essa explosão demorada de amor. Foi difícil. Conseguiu.
Fidelina livrou-o do casacão.
- Vens tão magro,
homem…
Sentaram-no à mesa e, com a diligência das cuidadoras, empurraram para a
sua frente um prato cheio. O perfume antigo e forte do anho encheu-lhe o corpo.
Atirou-se a ele como se não comesse há vinte anos. Talvez não comesse bem há
vinte anos, cada mês na trincheira era uma eternidade. As mulheres viram-no
devorar, levando a comida às próprias bocas num silêncio de perplexa maravilha.
Fidelina fitava ansiosa o rosto encovado, à procura do marido. Queria ver-lhe
os olhos, saber se ainda traziam por ela aquela paixão que nunca a deixava
descansar.
- Deixaram-te vir
para o Natal?
- Sim. Estou cá. Queria chegar e cheguei a tempo. Cheguei
a tempo.
- Estás bem?
Ele ensaiou um sorriso que lhe saiu torto, um esgar. Sabia lá o que estava.
- Estou vivo.
Fidelina abriu a boca cheia de perguntas, a sogra sacudiu a cabeça. O coração de mãe dizia‑lhe que nessa noite era melhor calá-las.
- Pois vieste mesmo a tempo para a Consoada, isso é verdade. – afirmou,
como se o filho tivesse ido só dali a Lisboa um mês ou dois – Daqui a pouco
passa a carroça do Silvano e vamos à missa do Galo. Queres?
- Não, mãe. Estou cansado. – Recostou-se, com o calor das chamas a
amolecê-lo e o peso do cabrito no estômago. Já não tremia, a não ser no fundo
da alma.
- Também não vou, mãe. – anunciou Fidelina,
de olho no marido. – O senhor padre há-de entender.
O crepitar das chamas aprofundava o espaço vazio entre a mulher que tanto
tempo esperara uma carta a fazê-la mais uma viúva na serrania, e o marido inesperadamente
regressado.
- Tinha medo que
não voltasses.
- Estou cá. Vim para o Natal. – repetiu, de repente vazio de objectivos. Fidelina
entrelaçou à força os dedos nos dedos compridos e rigídos do seu homem. Era
seu, havia de ser capaz de trazê-lo para si novamente.
- Rezamos tanto por ti e Nosso Senhor ouviu-nos, trouxe-te logo nesta
altura! Foi tudo tão triste sem ti, João, sem sabor, sem nada. – Apontou vagamente
para a comida, ainda em cima da mesa, e tocou nos lábios. – Estive sempre à tua
espera, sempre, mas quando chegou a carta da Rosa…
A Rosa, viúva do Olegário, companheiro de infância, camarada de Companhia e
trincheira. Só na morte não o seguira, o seu corpo intacto, o do outro desfeito.
Estremeceu da cabeça aos pés. Os dedos quase se soltaram dos dela, mas Fidelina
apertou-lhos e arrastou o banco para chegar-se mais. Ele quis fugir mas não
fugiu, reconheceu-lhe o cheiro a mulher e a pó de talco que o intrigara desde a
primeira vez que roçara por ela, para lhe sentir as carnes. Nenhuma das putas
que o aliviara lá longe cheirava assim. Era o cheiro a casa e à sua cama.
- Tens que voltar? Não ficas?
Não disse nada. Tinha que voltar. Não voltaria. Viera à procura de um
esquecimento temporário na casa da sua infância, prometido em cheiros familiares
e garfadas de boa comida de pobre, e nas coxas da mulher. Depois falariam, antes
levou-a para a cama atrás da cortina. Fidelina despiu-se, ele não. A madeira velha
chiou sob o peso deles quando ela o recebeu, primeiro tímida, depois toda calor
e entusiasmo. Era seu. Seu. Abriu-se a ele, deixou-o avançar, em cada investida,
os horrores recuaram para um lugar mais escuro ao fundo da casa, curto e doce o
esquecimento do amor.
- Vou fugir, Fidelina. – anunciou, gasto o fervor, as duas cabeças juntas
na mesma almofada – Fico estes dias e depois vou-me. Não volto para França.
Morro lá.
- Não fico aqui sem ti.
- Não te deixava. Vens.
Lá fora, a carroça chiou. Fidelina saltou da cama,
vestiu-se à pressa. A porta abriu‑se e deixou entrar a mãe e o perfume da neve.
João sorriu. O medo vivia longe do aroma do Natal.
Sobre a Autora:
Carla M. Soares nasceu em Moçâmedes em 1971. Formou-se em Línguas e
Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras de Lisboa e tornou-se
professora, de alma e coração. Tem um mestrado em Estudos Americanos. A
tese de doutoramento em História da Arte, começada na Faculdade onde
se formou, aguarda dias mais tranquilos para uma conclusão cuidada.
Publicou em 2012 o romance de época Alma Rebelde, com a Porto Editora, e embarcou em 2014 na aventura digital, publicando o romance A Chama ao Vento, com a Coolbooks. Trás-nos agora pela Marcador o seu mais recente romance de época O Cavalheiro Inglês.
3 comentários
Um conto que sobressai o humano, a fragilidade, a fome de calor humano, a sede da cor da familia...
ResponderEliminarGostei muito. Parabéns Vera pela iniciativa e parabéns à autora Carla M. Soares.
Adorei. Muito forte, emotivo, e leio aqui o resultado de algumas pesquisas ;-)
ResponderEliminarGostei muito! Parabéns Carla :)
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