Finding Christmas
um conto de Inês Montenegro
– Manela, querida! É um novo corte de cabelo?
A avó rebolou para dentro de casa, bem almofadada no interior do seu casaco de pele de coelho. Trazia um chapéu também de pele a condizer com o casaco, e as luvas pretas de senhora não pareciam ser suficientes para a preservar do frio que a neve do exterior emanava. Atrás dela, o avô sorria, carregado com os sacos de prendas, bafejando pelo contacto da respiração com o ar frio.
– Elisa – sorriu falsamente a mãe, estendendo os braços à sogra e beijando-lhe as bochechas. Os lábios torceram-se quando a mulher mais velha a olhou de cima a baixo, analisando-lhe a indumentária com a ferocidade de um falcão. – Já estão todos na sala, deixe que eu lhe arrume o casaco.
– Oh, Manela, o que é isso? – exclamou a avó, enquanto o avô fechava a porta da rua e lançava um olhar de encorajamento à nora. – Não é preciso tratares-nos como visitas, somos todos família!
– É a minha casa, és a porra de uma visita – murmurou Manela, rilhando os dentes e fulminando as costas da sogra, que se aventurava já pelo interior da moradia.
– Olá, avô – cumprimentou a rapariga, indiferente à má disposição da mãe, que disparara atrás da avó, provavelmente receosa de que a outra tentasse alguma marcação de domínio. – Isso é para colocar debaixo da árvore, não é?
– Ou no sapatinho – retorquiu o velho senhor com jovialidade, entrando na sala de jantar. Já preparado para o efeito, o local parecia saído de um postal de Natal: na parede do fundo a lareira elevava-se, gloriosa, nas suas chamas, apenas semi-escondidas pelas duas tias, em amena cavaqueira, de rabo virado para as labaredas. As meias grossas e rubras pendiam, vazias, na pedra da chaminé, esperando o avançar da noite para serem preenchidas com chocolates e outras guloseimas. De um dos lados, um pinheiro de Natal (belo e verde plástico) ostentava com orgulho enfeites vermelhos e dourados, comprados de novo para aquele ano, substituindo os antigos, já gastos e partidos. Apenas um se mantivera: o pequeno anjinho de cola e papel que o irmão mais velho fizera, ainda era criança de infantário.
Por baixo da árvore enfeitada, tradição adoptada de crenças mais antigas que o Cristianismo, espalhavam-se os presentes, de várias formas e feitios, todos coloridos e artisticamente empilhados. Desviavam as atenções dos mais jovens e pequenos da grande mesa que se estendia pelo centro da sala, carregada com o melhor serviço e os pratos daquela época: arroz de polvo, leitão e bacalhau.
À espera da sua vez, as sobremesas eram cobiçadas na cómoda encostada à parede oposta à do pinheiro de Natal. Aletria, rabanadas, bolo-rei, troncos de Natal, filhoses, orelhas-de-abade, fritos de abóbora e outros tantos eram os fortes concorrentes daquela noite ao aumento de peso de todos os presentes.
E por fim, o presépio. Há duas semanas atrás que Madalena fora com o irmão apanhar musgo para o fazer. A mãe, por entre os resmungos habituais de que era o último ano a que se dava a tal trabalho, havia afastado os móveis da parede do pinheiro, arranjando um nicho onde os filhos se apressaram a espalhar os jornais, colocando o musgo por cima e, por fim, se entregaram à diversão de espetar os bonecos de barro no manto verde, criando histórias e imaginando vidas. Eram lavadeiras, pastores e homens do povo, lado a lado com ovelhas, burros, e os três reis-magos, diligentemente montados nos seus camelos, todos eles maravilhados com o nascimento do Menino. Este, pobrezinho, jazia nu, umas pinceladas brancas fazendo a fralda de panos, de braços abertos na manjedoura. Ladeavam-no José e Maria, de mãos juntas em adoração, e, mais atrás, o burro e a vaca, respirando o aquecimento à criança recém-nascida. Esse grupo, mais restrito e antigo, encontrava a sua protecção no interior da cabana de madeira e zinco, que o irmão, orgulhoso, construíra, há cinco anos atrás (safara-se de bom raspanete com a perfeição daquela obra: rapinara as ferramentas do pai para a fazer, o que no meio do feito acabara despercebido). Sobre a cabana, alertando todos os viajantes, um anjo, a auréola de ferro já torcida e uma das pobres asas partidas. Era o mais antigo dos bonecos, e ainda se mantinha insubstituível: “Corri a cidade e não encontrei nenhum,” desabafara a mãe. “E fazem-nos cada vez mais feios!”
Tudo aquilo para festejar, achava Madalena, pouco mais que hipocrisia.
Viu os primos correrem na direcção do avô, gritando de alegria à vista do aumento de presentes. Cumprimentaram-no num pico de euforia, pinchando e com certeza piorando as dores de costas de que o velhote sofria, apenas para o largarem minutos depois, sem mais réstias de interesse, e regressarem aos seus importantes afazeres: jogos e brincadeiras.
– Elisa! – exclamaram as tias, vendo a sogra entrar – já sem casaco, chapéu e luvas – num porte de rainha. Atrás dela, procurando disfarçar as bufadelas de raiva, Manela respirava fundo, forçando-se a relembrar as normas de educação e vivência em sociedade. – Já nos perguntávamos quando viria, temíamos que tivesse tido um acidente.
Elisa sorriu, explicando com toda a paciência de um adulto para com uma criança que não, que apenas tinham apanhado um pouco de gelo na estrada.
– E o Eduardo? – perguntou, virando-se para a tia Cristina. – Já desistiu dessa ideia estúpida de ser homossexual? Se alguma vez pensei que um neto meu me viria com essas conversas!
Tanto o tio João, esposo da tia Nani, quanto o pai pareceram invulgarmente interessados na conversa que tinham suspendido sobre o ano de engarrafamento do vinho do Porto que iria ser servido ao jantar. Manela empalideceu, trocando um olhar rápida com a filha, preparando-se para intervir, não fosse Cristina, imóvel e por momentos sem fala, recuperar do choque de uma maneira pouco agradável.
– Não é altura para falarmos dessas coisas, querida – interveio o avô, com uma perspicácia conciliadora. – Quanto a vocês não sei, mas eu já estou com uma certa fome… Que pensas de chamarmos os rapazes, Manela?
Ainda ligeiramente aturdida, Manela acenou numa concordância frágil, antes de transferir para a filha a tarefa de ir chamar o irmão e o primo, Ricardo e Eduardo, entretidos no quarto do primeiro com um qualquer jogo da Wii.
– Diz à mãe que já vamos – argumentou o irmão.
– Olha que ninguém está com disposição para isso – alertou Madalena. – Para variar, anda tudo irritado.
O jantar natalício, feliz momento familiar de convívio e esperança, decorreu num ambiente de cortar a faca, com a mãe e a tia Cristina mal encarando a avó, a tia Nani insinuando melhores maneiras de educar os sobrinhos, os mais novos discutindo sobre quem levava o último pedaço de quê, e o tio João pouco se importando em disfarçar as intenções de barafustar com a mulher assim que voltassem a ficar sozinhos no quarto.
O golpe da misericórdia ocorreu quando Manela, num desabafo mal pensado, deixou escapar o que na mente de todos ia:
– O doce de leite que o Fausto sabia fazer…
O silêncio pesado e constrangedor instalou-se à mesa por momentos, com os adolescentes a olharam, desconfortáveis, para os lados, os pequenos sem perceberem o que se passava, e a avó Elisa a desfazer-se em lágrimas. Cristina, muito educadamente, pediu licença e fugiu para a cozinha, seguida por Manela, ansiosa em reparar o seu erro.
Fausto era, não existiam dúvidas, o assunto proibido. Irmão do pai e do tio João, filho de Elisa e do avô Mário, casara com Cristina, educara Eduardo e ainda vira nascer a filha, Isabelinha, agora com quatro aninhos de idade. Faziam seis meses que falecera num acidente de viação, quando procurava chegar a casa a tempo de festejar o aniversário de casamento.
E aquilo era o seu Natal. Uma época de falsidade, em que a família se obrigava a reunir na mais pura da hipocrisia, aturando-se com muita pouca paciência ou glamour, alimentando o monstrengo capitalista que sobres eles estendia os seus gordos tentáculos.
“Oh oh oh! Feliz Natal!”
***
Acordou sem qualquer razão em especial. Talvez tivesse sido um ruído, ou talvez não fosse mais do que uma sensação, contudo, agora que estava desperta, não encontrava modo de voltar a chamar o sono. Recordou os anos idos de criança, em que teria dado tudo para se conseguir manter acordada durante a noite, de modo a apanhar o Pai Natal em plena actividade nocturna. Naturalmente, nunca tal acontecera, embora por duas vezes tivesse jurado que tinha ouvido os sininhos das renas. Tolices de criança.
Com cuidado para não acordar as primas, saiu da cama, enfiando os pés nos chinelos e lançando o robe por cima dos ombros. Deslizou pelo corredor, descendo as escadas de mansinho, regressando à sala onde a lareira ainda deveria arder. Já que se encontrava acordada, por que não abrir os presentes?
O coração cambalhotou dentro da caixa torácica, batendo em fúria pelo susto que a figura sentada de costas para si lhe pregara. Encontrava-se de frente para a lareira, com um à-vontade e conforto que claramente só poderiam ser conseguidos por alguém que não seria um intruso naquela casa. A cabeça pendia para um dos lados, quase adormecida, e as mãos pareciam cruzar-se no seu regaço.
– Avô?
A figura virou-se para ela, revelando as feições cansadas e bem-dispostas do avô Mário.
– Madalena, querida! – exclamou, num tom afável. – É tão tarde. Já devias estar a dormir.
Apesar das palavras de repreensão, estendera a mão num convite para que a neta se instalasse ao seu lado. Pouco se fazendo de rogada, Madalena pegou numa cadeira, sentando-se também ela de frente para a lareira, agora convertida num incandescente amontoado de brasas.
– Não consigo dormir – explicou. – Pensei em abrir as minhas prendas.
– Esse não é um bom espírito – repreendeu o avô, estalando a língua. – Assim perdes a perspectiva da manhã.
Madalena revirou os olhos.
– Perspectiva? – repetiu. – Todo o espírito do Natal é mentira, avô. Não é uma época que goste muito.
Um lampejo de amargura atravessou os envelhecidos olhos avelã.
– Ah, que triste deve ser isso – murmurou.
– Não é triste, é a verdade.
– Por que dizes isso, querida?
Madalena lançou um olhar desconfiado ao avô. Ao contrário da avó, o avô Mário ponderava as suas palavras, atento ao modo como estas afectariam aqueles que o rodeavam. Era um homem íntegro, bondoso, que frequentemente se mostrara merecedor do seu respeito. Não o queria magoar, não quando ele tomava tanto cuidado para não o fazer aos outros.
– É uma época capitalista, é só vender, vender, comprar, comprar… Qual é a piada?
O avô riu-se, não de um modo ofensivo, mas na honestidade de quem descobrira uma graça inocente.
– Minha querida, o comércio vive sempre disso. Não existe feriado, festa ou dia-a-dia que não aproveitem o que têm para incentivar às trocas de compra e venda! Capitalismo, a bem ou mal, é o karma da nossa sociedade, todos os dias, todas as horas. A importância que ele tem para o Natal não é mais do que aquela que lhe dás.
– Então acha que é correcto? – insurgiu-se Madalena.
– Não. Acho que de dois males, temos o menor. Também já me irritei muito com esse zum-zum de compras que se faz. Agora é-me indiferente. Cheguei a uma idade em que me posso dar ao luxo de saber que consigo escolher o que me afecta ou deixa de afectar.
– Ainda assim – prosseguiu Madalena, pouco convencida – não é isso o pior. O que realmente não entendo é esta obrigação de reunir com a família. A maioria das famílias não se suporta, admiro-me como as Urgências não se enchem por esta altura. Deve haver cada discussão familiar… Veja só o nosso jantar! Foi uma miséria!
– Não foi, realmente, dos melhores – concordou o avô. Um estalido soltou-se algures no meio das brasas, juntando-se aos ruídos típicos de uma casa adormecida. Em cima da mesa, esperando com paciência que alguém lhe desse fim, encontrava-se um copo de leite, ladeado por um prato de bolachas: pequenos agradecimentos deixados pelos primos pequenos ao Pai Natal, que tantas casas tinha para visitar numa só noite.
– Por vezes – continuou o avô, – precisamos de fazer esses sacrifícios para que todos possam estar com quem amam. Eu queria estar com todos vocês, e também com a tua avó. Mas e se a tua mãe ou a Cristina batessem o pé, e se recusassem a passar a Consoada com a Elisa? Vontade, por vezes, não lhes falta. Imaginas a infelicidade que isso seria para mim, ou para o teu pai? Não falando da Elisa, que ficaria destroçada.
– Natal é sacrifício?
– É dar e receber – corrigiu o avô. – Algo que vai muito mais além do que presentes embrulhados. Eu, todos os Natais, gosto de fechar os olhos e relembrar aqueles que me ofereceram algo durante o ano. Amizade, amor, compreensão, tempo…
Madalena acenou levemente, compreendo onde o avô queria chegar.
– Não sei se precisamos do Natal para fazer isso…
– Ah, se não existir alguma data específica que nos faça recordar, esquecemo-nos, querida. É a natureza da maioria de nós. – Ergueu o pulso, lançando um olhar crítico ao relógio. – E agora que tal se te fosses deitar? Amanhã tens coisas para fazer, ou não?
Madalena riu, sabendo que o avô lhe interpretara correctamente as intenções. Inconscientemente, estivera a relembrar momentos, situações, sentimentos, conversas, gestos e atitudes de amigos e familiares que nunca chegara a agradecer como deve ser. O dia seguinte parecia ser ideal para o fazer. Afinal, naquele Natal, pouco mais fizera do que enviar a todos, sem excepção, uma mensagem massificada, desejando feliz Natal e bom Ano Novo.
– Boa noite, avô – desejou, levantando-se e despedindo-se com um beijo na bochecha descaída.
– Boa noite, querida. Feliz Natal.
Sobre a autora
Inês Montenegro nasceu em Novembro de 1988, na cidade do Porto, Portugal, onde estuda actualmente. Formada em Direito pela FDUP, encontra-se agora a tirar o segundo curso, em Línguas, Literaturas e Culturas, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Actualmente tem publicados ou em vias de publicação uma diversidade de contos que se espalham por antologias e fanzines, quer portuguesas quer brasileiras, além de participar no Fantasy & Co, um espaço dedicado à publicação de contos fantásticos.
http://www.talesofgondwana.blogspot.pt/
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