A Ana Ferreira, proprietária do blogue Illusionary Pleasure entre tantas outras dezenas de coisas que faz, é para mim uma verdadeira força da natureza. Dona de uma opinião muito própria que não deixa nada por dizer, achei que seria a pessoa perfeita para mais um artigo para a rubrica Amo ler porque...
A DAMA DAS CAMÉLIAS
ou
Margarida Gautier, a minha primeira heroina trágica favorita
Com a adaptação da obra de Tolstoi “Anna Karenina” as editoras parecem predispostas a reviver o clássico “A dama das Camélias” de Alexandre Dumas, filho. A obra sempre foi uma perda grande nas estantes portuguesas. Uma vez ou outra via uma reedição com capa pouco apelativa, comparando com a que tenho em casa. Para quem tinha quatorze anos e uma enorme falta de vontade de ler qualquer tipo de livros (sim vamos continuar na ilusão que qualquer escritor nasceu a querer escrever e que desde miúda que o meu sonho era esse... er pois, exacto, não e não tenho vergonha nenhuma de o admitir)., a coisa até correu bem. A minha mãe forçava-me a ler um livro por ano (no Verão), ao ver-me ao lado da Playstation a jogar RPGs.
“Não tens nada mais para fazer?” Eu de barriga para baixo a tentar decifrar o que as criaturas no jogo estavam a dizer em inglês, olhava para ela, à espera do sermão.
“Estou a jogar, não vês?” Ela irritada, ia à estante cheia de clássicos de bolso da Europa-América e lá atirava-me um.
“Lê que te faz bem e deixa a porcaria dos jogos.” Não sei quanto a vocês, mas eu sempre fui habituada a ser sincera, honesta e a obedecer aos pais e professores, por isso lá comecei a ler. Não vou contar a minha experiência com as folhas caídas do Almeida Garrett antes do secundário, porque foi no minimo traumática (do género, eu a ler e pensar “mas o que é que este gajo fumou mesmo?”).
“A dama das Camélias” não foi o primeiro livro que li a sério, mas foi a primeira “hint” de que se calhar um dia eu viria a adorar literatura (o sr. Shakespeare e o sr. Wilde mais tarde confirmaram). A visão de uma mulher bonita e rica reduzida a esqueleto é chocante. Dumas filho opta por situar o leitor no presente, Margarida Gautier está morta e todos os seus pertenceres serão leiloados. Armand Duval, um amante antigo seu, ao ver o seu apartamento ser despido, decide lutar no leilão para ter pelo menos um pertence da sua amada agora morta. Estas são as primeiras páginas intensas que o autor ofereceu a uma “pseudo”leitora jovem. O início é excelente e teve todos os ingredientes para me chamar a atenção. Quem foi Margarida? Porque é que ela morreu? Porque é que o Armand a adorava tanto a ponto de guerrear um leilão por causa de um diário? Devido à minha inexperiência literária as próximas páginas foram uma tortura. Não consegui deixar o livro e li-o numa tarde. A dama das Camélias não é um page-turner, longe disso. Mas é uma história de amor intensa, um retrato fascinante sobre a vida das cortesãs e a luta constante entre o poder do dinheiro na vida e do amor.
Margarida Gautier tornou-se a minha personagem favorita durante uns largos anos (ok ainda está no panteão pessoal de personagens femininas trágicas... what can I say? Adoro mulheres fortes que acabam mortas). Primeiro de tudo era muito bela, aos catorze anos, é quase impossível uma rapariga não gostar de mulheres bonitas com charme. Segundo tinha uma profissão reprovada pela sociedade (e talvez o Freud consiga-me explicação a fascinação que tenho por personagens que são prostitutas na ficção). Se formos a ver bem, a Cleopatra (sim Shakespeare, estou a olhar para ti) não escapou à morte (in fact, she embraced it), Prünhilt atirou-se para a pilha funerária de Sivrit, mesmo sendo uma Valquíria, Lady Macbeth, a grande Lady Macbeth não escapa à sua própria loucura, a personagem Fanny Hill (a inocente que caiu nas malhas da prostituição) conseguiu um final feliz, já Juliette (olá, Sade) e até Satin (do filme Moulin Rouge) não conseguiram fugir ao estereótipo de prostitutas que acabam por morrer. O primeiro instinto é ter pena destas mulheres que amaram, por outro lado a sua morte é uma espécie de libertação e renúncia à vida pecaminosa que levaram. Por outro lado, Armand é um herói longe da personagem de Mr. Darcy ou até do tempestuoso Heathcliff. Armand vê-se sugado pela beleza de Gautier (já que ela também tem pouco mais a oferecer do que isso mesmo) e luta por conseguir que ela se cure e tenha uma vida modesta. Durante algum tempo, na inocência pensamos que sim, que eles vão poder ficar juntos para sempre. Margarida conseguirá conter-se nas suas despesas para ficar com um homem que a ama, e quer cuidar dela? Estas perguntas correm o leitor durante as páginas do livro e, ainda que este seja um pouco pesado (a história é apenas esta, com detalhes históricos, claro), é quase impossível evitar a lágrima no canto do olho (ou várias).
Claro que passado alguns anos, pensei que a magia da Dama das Camélias tinha sido apenas devido a ser uma primeira leitura inexperiente. Antes de entrar na faculdade, decidi reler. Mas então as lágrimas voltaram a cair e voltei a sentir tudo o que tinha sentido na primeira leitura. Não tentei a terceira vez mal acabei a licenciatura. O medo venceu-me. Li duas vezes, mas e se desta vez achar que o livro afinal era uma lamechice pegada? E se encontrar novos simbolismos e adorar ainda mais o livro? Perferi ficar na dúvida, permanecer com o gosto especial de que um dia também eu ia conseguir escrever um livro que mexesse com as pessoas e as fizesse chorar (e para isso precisei de criar a minha própria personagem trágica, oh dear). Decidi que queria fazer o mesmo que o Dumas, filho e roubar a esperança das pessoas, dar-lhes um amor lindo, uma história bonita e depois, num último acto de crueldade retirar o sopro que os leitores possuem. Porque é isso que este livro me provocou. Atirei-o contra a parede, perguntei porque é que tanto Margarida e Armand não podiam lutar contra um final boss e ficar tudo bem com uma música de fundo linda. Depois lembrei-me que aquela história havia sido verídica. Margarida Gautier existiu e foi aquele o seu fim. Depois das lágrimas e da rejeição daquele final, vem a aceitação. Aceitamos que o mundo seja injusto, uma merda e que nem sempre o amor vence. Esta lição foi-me dada através dos livros, através dos consequentes murros que os autores me davam sem sequer saberem. Afinal qual é o propósito de ler um livro se este não nos incomoda minimamente? Os melhores livros são aqueles que nos arrancam o coração e nos deixam a lutar para voltarmos ao nosso mundo seguro. Por vezes os autores decidem serem Deuses misericordiosos e devolvem a réstia de vida, mas nem todos os Deuses são piedosos e devemos aceitar as bofetadas de olhos fechados e agradecer a experiência.
PS: O compositor Giuseppe Verdi gostou tanto da obra que a adaptou para ópera, ao qual deu o nome de “La Traviata”. O livro está disponível em edição de bolso da Europa-América.
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