Eis que hoje começo o meu post com mais uma pergunta para vocês: estão familiarizados com aquelas situações em que estando a ler um livro, a ver um filme, ou até mesmo uma série de TV, se deparam com uma ou outra personagem que vos transmite a sensação de ter sido criada quase que exclusivamente com o propósito de preencher uma certa quota em qualquer que seja a fórmula que o autor pretende alcançar? Sim?Não? Infelizmente, tal já me aconteceu várias vezes...
Se se estão a questionar em relação a que assunto me refiro, digo-vos que venho hoje falar-vos um pouco sobre sexualidades não-heteronormativas e a sua representação na media. E, claro, analisar um pouco mais especificamente a presença e desenvolvimento de tal temática em Shadowhunters e em Os Instrumentos Mortais.
Para começar, é preciso reconhecer e celebrar que nos dias de hoje seja cada vez mais comum que se verifique um maior cuidado e preocupação por parte de criadores de entertenimento em expandir a visibilidade e representação dada a todo o espectro da comunidade LGBTQ+. No entanto, é preciso igualmente notar que continua a ser ridiculamente recorrente que a personagens homossexuais ou bissexuais, por exemplo, não seja necessariamente dado o mesmo tipo de tratamento ou oportunidades que se proporcionam a personagens heterossexuais. Muitas vezes é, aliás, dolorosamente reconhecível que certas personagens foram introduzidas num história apenas com a intenção de preencher a tal quota que mencionei: a quota de diversidade. E, assim sendo, se és heterossexual, podes ser o protagonista da tua própria história, podes estar no comando do que te acontece a ti e a outros. Podes até ser responsável pelo destino do mundo! Mas se és homossexual, a história já é outra. Regra geral, terás sorte se te disserem que podes ser o melhor amigo do protagonista. A maior parte das vezes, a triste realidade é que te relegarão a mero elemento reaccionário ao enredo que se desenlaça à tua volta. Então e se fores bissexual? Lamento, mas a tua existência é quase tão impossível de provar como a de um unicórnio.
No que toca a Os Instrumentos Mortais, as bases para uma boa representação da comunidade LGBTQ+ foram lançadas logo a partir do primeiro livro, é verdade. No entanto, boas intenções são apenas uma pequena parte de todo o intrínseco processo que é criar e desenvolver uma narrativa. Ao longo de toda a série, Cassandra Clare teve momentos de brilhante inspiração no que toca à maneira como temas desta natureza devem ser explorados. Pelo reverso, foram também inúmeras as vezes em que não foi particularmente bem sucedida na abordagem de certos aspectos. Quase dez anos depois do início desta aventura, Shadowhunters chega aos ecrãs e traz consigo variadas oportunidades de melhorar o modo como certas coisas se processaram.
Para quem é novo nestas andanças, permitam-me que vos apresente Alec e Magnus, carinhosamente conhecidos como Malec enquanto casal. Na tal quota de diversidade a que tenho vindo a aludir, Alec destaca-se como representante da homossexualidade; Magnus, por sua vez, dá voz à bissexualidade. Pode parecer estranho que tenha escolhido esta maneira específica e fora do normal para me referir aos papéis de ambos na história, particularmente nos livros, mas analisando bem as coisas talvez venham a aperceber-se de que, afinal, não é tão esquisito assim.
E isso porquê, perguntam vocês? Isso porque, no que toca à representação de temáticas que a nossa sociedade considera delicadas, há uma ténue linha na qual os autores têm que balançar a realidade vs. as expectativas. Por um lado, há que fazer por que as personagens que são apresentadas ao público sejam realistas ao ponto da audiência responder a elas como se fossem efectivamente tridimensionláis. Por outro lado, tratando-se de um assunto um tanto ou quanto tabu, convém que se tenha um certo cuidado em que o que está a ser apresentado não tenha como ser distorcido e reinterpretado negativamente, acabando por denegrir a visibilidade que se quer dar a esta comunidade. O ideal, o pináculo de uma narrativa bem conseguida, é o culminar de ambas as vertentes, é a criação de uma história simultaneamente realista e melhor do que a realidade.
Pessoalmente, tenho que admitir ter tido a minha quota parte de problemas com a maneira como Cassandra Clare muitas vezes geriu esta situação. Ao longo de grande parte da série, a caracterização de Alec e Magnus foi inconsistente e, atrevo-me a dizer, a roçar o descuidado em alguns aspectos. Maioritariamente, aponto o dedo à falta de desenvolvimento de cada um destes personagens enquanto indíviduos, sendo tal especialmente flagrante no caso de Alec.
Felizmente, a oportunidade de revisão que Shadowhunters proporciona a esta série fez com que várias das minhas incertezas desaparecessem. Ao contrário do que acontece no material original, onde Alec nos é apresentado como sendo uma pessoa extremamente insegura, confusa, em profundo estado de negação, e com muito pouco conteúdo de interesse, este novo guião oferece a Alec a oportunidade de ser mais amplamente explorado pelos seus méritos pessoais e não apenas como nota de rodapé na história de outrém: é-lhe dada mais autonomia e agência própria, é-lhe criada uma história só sua e que em nada depende nem o faz dependente do conflito principal. Acima de tudo, são-lhe construídas uma personalidade e identidade próprias que lhe oferecem uma maturidade e sentido de valor pessoal que estavam em clara falta nos livros. Alec já não é única e exclusivamente definido pelo estado das suas diversas relações - amigo, filho, irmão, e especialmente interesse amoroso. Tudo isso é parte de Alec, sim, mas não só isso faz de Alec quem ele realmente é. E quem ele é foi o que levou o público a mais facilmente relacionar-se emocional e psicologicamente com o personagem. Alec continua a ser a pessoa falível e passível de dúvidas e medos que já era originalmente, mas esta sua nova versão, que eu considero melhorada, fez com que um personagem que anteriormente tão baixo lugar ocupava na lista de favoritos da grande maioria dos fãs passasse a ocupar um lugar de topo com o seu correspondente televisivo... Tal é o poder de se criarem pessoas, ainda que fictícias, ao invés de recipientes onde se estampar rótulos!
Aliás, já que menciono rótulos, falemos agora um pouco sobre Magnus. Ao contrário do que comentei acerca de Alec, Magnus foi admitidamente onde Cassandra Clare acertou mais em cheio na representação individual de um personagem LGBTQ+. Magnus é, desde o primeiro momento, muito mais completo, complexo e, acima de tudo, muito mais fácil de se relacionar com o público. Grande parte desses aspectos prende-se com o que mencionei no parágrafo anterior: este foi um personagem a quem a autora dedicou mais tempo e a quem foi dada uma história que o separou e tornou independente do enredo principal da série. A tal ponto, aliás, que Magnus veio mais tarde a ter um livro dedicado apenas a si e à sua vida. Ainda que Magnus possa por vezes parecer ter tropeçado na escadaria dos estereótipos e acertado em quase todos os degraus, principalmente no que toca à sua aparência exterior, pelo menos a maneira como tal foi incorporado na história serve o propósito de expôr um claro contraste com Alec e criar diversidade.
No entanto, é quando a sua sexualidade inicialmente é abordada nos livros que a maneira como a autora a tratou começa a ser um pouco problemática. A primeira instância em que é dado a conhecer ao público que Magnus é, de facto, bissexual ocorre no quarto livro, A Cidade dos Anjos Caídos, aquando do primeiro encontro e confronto de Magnus e Alec com Camille. Tristemente, ao ficar a saber que a pessoa com quem namora é bissexual e teve uma séria relação com Camille no passado, Alec não reage da melhor maneira e faz, inclusivamente, alguns comentários bifóbicos, mantendo mesmo durante algum tempo um certo nível de desconforto no que toca à sexualidade do namorado e aos seus relacionamentos com pessoas do sexo oposto. Felizmente, em Shadowhunters a questão foi abordada de outro modo. Desde muito cedo na narrativa que é abertamente dito que Magnus teve inúmeras relações ao longo dos anos, quer com homens ou mulheres, e tal facto é do conhecimento de Alec. E tal facto, nesta versão, não parece causar qualquer tipo de problema a Alec, tanto quando o próprio Magnus menciona o assunto ou até mesmo quando Alec e Camille inicialmente se conhecem.
Outro ponto da relação de ambos que Shadowhunters melhorou, na minha opinião, prende-se com a maneira como Alec decide assumir publicamente a sua sexualidade. No original, depois de manter uma relação com Magnus durante algum tempo, às escondidas de toda a gente, e dessa relação começar a desgastar-se e a trazer problemas derivados do secretismo, Alec acaba finalmente por beijar Magnus à frente de dezenas de pessoas e dar-lhes assim a conhecer que é gay. Nos livros, no entanto, parte da razão porque Alec se assume na altura em que se assume está fortemente relacionada com uma insistência por parte de Magnus e com o facto de que ambos estão prestes a enfrentar uma situação de vida ou morte. Em Shadowhunters, tal não acontece. Não se pode negar que Magnus tenta por diversas vezes fazer com que Alec se assuma, sim, mas mais a um nível pessoal do que propriamente público. É dado a entender, aliás, que Magnus não estaria oposto à ideia de manter uma possível relação de ambos em segredo se fosse isso que Alec preferrise e o fizesse mais confortável. Nota-se claramente uma preocupação pela parte de Magnus em que Alec possa finalmente aceitar-se como é e ser mais feliz por isso, mas é também demonstrado que Magnus não espera que isso inclua espalhar aos sete ventos a notícia de que, sim, Alec Lightwood se sente atraído por homens. O modo como as coisas se desenrolaram levou, inclusivamente, a um dos momentos altos de toda a temporada. Um dos momentos altos de todas as temporadas de televisão a serem transmitidas neste momento, aliás: o momento em que Alec, prestes a casar-se com uma mulher, acaba por dar-se conta de que está a meros momentos de cometer um dos maiores erros da sua vida e reconhece para si próprio de que não vale a pena continuar a esconder-se. Se é um pouco dramático e claramente saído de um aniverso fictício? Sim, é... Mas quem não gosta de um pouco de conto de fadas nas suas vidas uma vez ou outra?
A partir deste momento, estão então lançadas as bases para uma relação que ainda só agora começou a formar-se, mas que tem já o potencial de ser fantástica: uma relação criada a partir de uma forte atraccção, sem dúvida, mas que se tem vindo a desenvolver a pouco e pouco através de ajuda mútua, confiança, comunicação e, acima de tudo, um reconhecimento de que apaixonar-se por uma pessoa é mais do que uma mera reaccção física, que leva tempo e trabalho, mas que é algo a que ambos estão dispostos a dedicar-se.
Visto tudo isto, resta-me deixar uma última mensagem: infelizmente, em casos destes, muita gente precisa ainda que lhes seja mostrado que só porque uma pessoa pode ter uma sexualidade diferente da maioria tal não faz dela uma pessoa inferior. Por isso, autores, e guionistas, e produtores, criem relações com bases sólidas, com potencial para serem desenvolvidas com esmero; relações consequentemente mais saudáveis e exemplos mais benéficos para a sociedade; relações que quebrem os estereótipos negativos muitas vezes associados a relações entre pessoas do mesmo sexo. E por isso também, autores e guionistas e produtores, certifiquem-se de que as personagens que criam para representar a comunidade LGBTQ+ têm profundidade emocional, riqueza de carácter, uma história onde possam ser os heróis; deêm-lhes as mesmas oportunidades que proporcionariam a qualquer heterossexual. Normalizem e validem a existência de gays, lésbicas, bissexuais, e todas as outras sexualidades do espectro, porque eles existem e, de facto, nada poderia ser mais normal.
1 comentários
Eu li o primeiro livro porque gostei muito do filme, mesmo que não tivesse tido sucesso. Vi o primeiro episodio da serie, mas como é algo de diferente do livro na minha opinião, não me cativou a continuar a vê-la. Contudo tenho intenção de continuar a ler a saga.
ResponderEliminarGostei muito do teu artigo/post, muito bem feito :).